Projeto de lei que altera a lei de arbitragem: quando o ótimo é inimigo do bom

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24 de outubro de 2014
Por Mauricio Gomm Santos
A lei 9.307 de 23 de setembro de 1996 que dispõe sobre a arbitragem no Brasil (“LAB”) completou recentemente os seus 18 anos. Vários fatores contribuíram para o sucesso da arbitragem ao longo deste período, dentre os quais (i) o reconhecimento da constitucionalidade da LAB, pelo Supremo Tribunal Federal, em 2001; (ii) a ratificação pelo Brasil da Convenção das Nações Unidas para o Reconhecimento e Execução de Laudos Arbitrais Estrangeiros, em 2002; (iii) a EC 45/04 que deslocou para o Superior Tribunal de Justiça a competência para análise de pedidos de reconhecimento de laudos arbitrais estrangeiros, transformando-o na Corte a oferecer, no âmbito doméstico, a última palavra sobre a interpretação da LAB, e, no âmbito internacional, a porta de entrada de decisões estrangeiras no Brasil.
Apesar da sua inquestionável maturidade e positiva contribuição para investimentos no país, criou-se a percepção, entre nós, de que a LAB deve ser alterada. O que se espera de uma lei boa não é que seja sempre moderna no calendário ou na dicção, mas que contenha certa flexibilidade a permitir interpretação adequada pelo Judiciário ao longo do seu tempo de vigência. É o Judiciário que precisa arejar-se para bem interpretar a lei em face das constantes mutações e ajustes que ocorrem na sociedade. O Superior Tribunal de Justiça tem positivamente se desincumbido deste mister, o que, por consequência, tem conferido um ambiente de segurança jurídica almejado por investidores brasileiros e estrangeiros.
Portanto, os ventos de mudança para “modernizar” o instituto, rotulados como inevitáveis, contemplaram – diante de tal questionável premissa – um acerto inicial e um risco consequencial. O acerto provém da formação de uma Comissão de Juristas, capitaneada pelo Ministro Luis Felipe Salomão da Corte Superior. Do trabalho desta Comissão nasceu o PL 7108/14. E aqui, paradoxalmente, reside o risco: todos sabemos quando um projeto de lei entra no Congresso Nacional, mas ninguém sabe quando e como dele sai. O Legislativo naturalmente representa diversos grupos e setores. Há aqueles que conhecem a arbitragem, outros que pouco ou nada conhecem e ainda os que acham que conhecem. Este quadro naturalmente coloca em cheque o que a comunidade arbitral e Judiciário brasileiros construíram ao longo de quase duas décadas, em cima de um diploma flexível o suficiente para permitir uma interpretação consentânea com princípios universalmente aceitos. Portanto, já temos o certo que – se não é perfeito – não precisaria abrir a porta para o incerto.
Veja-se, por exemplo, o caso da emenda que permite à parte interessada “ingressar em juízo para requerer a prolação de sentença arbitral complementar, se o árbitro não decidir todas as questões submetidas à arbitragem.” Ora, não é preciso exercício de futurologia para enxergar a quantidade de ações judiciais que tal sugestão – se aprovada – acabará gerando. Todos os sucumbentes na arbitragem naturalmente tenderão a bater às portas do Judiciário defendendo que nem todas as “questões” foram decididas pelo árbitro. Consequentemente, hão de igualmente defender que, enquanto não houver manifestação judicial complementar, imperar-se-á a sustação dos efeitos da decisão arbitral. Portanto, a suspensão dos efeitos da sentença arbitral tem tudo para ser a regra; não a exceção. Se há o temor de que o árbitro venha a julgar equivocada ou parcialmente as “questões” a si confiadas, cabem as partes deixar claro suas preocupações no Termo de Arbitragem ou documento similar, estabelecendo inclusive, se assim for o seu desejo, a previsão de um duplo grau arbitral para o caso específico, como, aliás, tem sido previsto em algumas recentes alterações em regulamentos arbitrais institucionais. De qualquer sorte, o remédio criado no Senado não só está equivocado, como o paciente sequer está enfermo.
Outro exemplo infeliz apresentado no Congresso Nacional é o que possibilita o uso da arbitragem pela administração pública direta ou indireta “desde que prevista no edital ou contratos da Administração, nos termos do regulamento”. Ora, a locução adverbial condicional “desde que” seguida da menção aos “termos do regulamento” faz nascer um quadro de dependência perigosa, anacrônica e supérflua. Além da clara desenecessidade da regulamentação e da flagrante insegurança que daí adviria, cabe relembrar que já há expressa previsão em diversos diplomas legislativos do uso da arbitragem por entes da Administração Pública, sempre sob a lente do Judiciário que tem construído um sólido case law sobre o assunto. Ademais, o trabalho para se regulamentar dispositivos legislativos traz, como é sabido, incerteza no conteúdo e no tempo. Colocado de forma simples, a permanecer a emenda feita na Câmara dos Deputados, retroagiremos. Ainda que não permaneça – e a idéia de regulamentação seja suprimida – pouco benefício trará. Aliás, poderá gerar novo e rápido anseio de mudança. Para tal, basta que a Administração comece a ter contra si decisões arbitrais, as quais se apimentarão se a parte vencedora for estrangeira, subsidiária nacional de empresa estrangeira, ou administrada por câmara internacional, ainda que princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa tenham sido preservados. Neste momento, não faltarão vozes em defesa da mudança da lei que ora se quer mudar. Ou seja, estaremos criando um gremlin que, simpático a alguns, transformar-se-á em monstro para todos.
O Peru orgulhosamente apresentou à comunidade uma lei que obrigava a administração pública a resolver por arbitragem seus conflitos com particulares. Tal diploma foi festejado, aos quatros cantos, como uma arrojada e positiva postura pró-arbitral do povo peruano. Passados seis anos de sua vigência, bastaram alguns reveses da Administração para que fizessem surgir debates de mudança legislativa para condicionar ou amarrar o uso da arbitragem pela Administração. Segundo representantes da comunidade jurídica andina, tal quadro, se avançar, poderá levar à insegurança jurídica de um dos países que mais cresce na América Latina nos últimos anos. Nos EUA, a Lei Federal de Arbitragem está beirando os 90 anos. Evidentemente, poderia ter sido alterada, mas é voz assente entre o mundo arbitral yankee que uma tentativa de mudança, por mais justificável e acertada que fosse, abriria uma caixa de pandora com risco para o próprio exercício do instituto e prejuízos incalculáveis ao país.
Em suma, quando a insegurança aparece, o investidor desaparece ou o prêmio do seguro cresce. A LAB não é perfeita nem será a Lei que a modificará. Todavia, a LAB é uma lei boa com um ótimo intérprete. A busca da lei ótima para o bom intérprete confirmará a regra segundo a qual, não raro, o ótimo é inimigo do bom. Fiquemos com o bom que já está ótimo. Sendo inevitável a mudança da LAB que referidas emendas sejam rejeitadas.
Fonte: Migalhas
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